Setor, que teve faturamento de R$ 369,6 bilhões em 2019
Crise ou oportunidade de negócio? No setor de transporte de cargas e logística, as duas variáveis caminham juntas no cenário imposto pela pandemia mundial do novo coronavírus. A diferença entre o sucesso e o fracasso está na capacidade e rapidez com que empresários e trabalhadores do setor se adaptam à nova realidade de mercado. Para descobrir quais são as tendências atuais e para quando a pandemia acabar, o Correio entrevistou consultores, especialistas em logística, empresários e entidades de classe.
Em apenas quatro meses, o mundo dos negócios, como se conhecia, ruiu e, com ele, o setor, que teve uma estimativa de faturamento próximo a R$ 369,6 bilhões em 2019 e com mais de 4 milhões de empregos nas empresas associadas direta ou indiretamente à Associação Nacional do Transporte de Cargas e Logística (NTC), reinventou-se. “Para a logística, cuja origem remonta ao período das guerras no início da civilização, seus estágios de evolução e modernização coincidiram com eventos de profunda crise. A pandemia da covid-19, por exemplo, fez impulsionar os planos de continuidade de negócios e acelerar o processo de transformação digital, colocando-a em outro patamar”, avalia Marcelo Almeida, doutor em transportes pela Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador e coordenador de projetos da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Gestão de Políticas Públicas (Face-UnB).
Apesar da característica de integração inerente ao processo logístico, é possível segmentá-lo em níveis: global, nacional, regional e local. Com a pandemia, houve ruptura das cadeias globais, com impacto severo na integração logística. “Enquanto isso, em nível nacional, interpretações distintas sobre a classificação de produtos e serviços essenciais induziram às restrições de circulação e criaram percalços operacionais, descontinuando atividades de apoio ao transporte. Esses entraves consistiram nos principais desafios enfrentados pelo setor (no país)”, detalha Almeida.
Tecnologia
Por outro lado, quem não tem capital de giro, desconhece ou recusa-se a adotar soluções tecnológicas, corre sério risco de fechar as portas. Pesquisa recente realizada pelo Sebrae com 400 empresas participantes revelou que 79% não adotaram nenhuma estratégia de enfrentamento à crise e apenas 21% adotaram planos de adaptação, incluindo a questão digital.
Um dos caminhos apontados pelo analista de competitividade do Sebrae Victor Rodrigues Ferreira é a conexão das transportadoras e motoristas a plataformas de marketing place específicas para a logística. Nelas, as empresas e prestadores de serviço cadastrados conseguem saber onde tem carga, valor do frete, permite otimizar rotas, entre outras coisas. “Estamos preparando cursos digitais para que o segmento encontre novos meios de mercado e como operar essas plataformas dentro do seu negócio. Também trabalhamos para que os caminhoneiros autônomos se formalizem por meio do MEI (microempreendedor individual), pois isso lhe garante uma proteção social”, adianta Victor.
Pesquisadores de quatro países — Polônia, Holanda, Austrália e Brasil — dedicam-se a entender os efeitos da pandemia do novo coronavírus sobre os hábitos de compra pelo comércio eletrônico, o e-commerce. “O que dá para dizer é: houve aumento por entrega, principalmente de alimentos e produtos voltados ao bem-estar, como cadeiras ergonômicas, itens para atividade física em casa. Não estávamos preparados para trabalhar em casa. Isso no começo da pandemia”, pontua a professora associada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Leise Kelli de Oliveira, uma das integrantes do grupo de pesquisa. O novo levantamento foi replicado, mas os resultados ainda não foram consolidados.
De qualquer modo, a professora Leise Kelli é enfática ao dizer que a barreira do medo das compras on-line, que ainda existia, foi quebrada e não tem volta. Uma consequência para o setor de logística foi a pulverização das entregas. Portanto, o momento é de olhar para frente e investir em modelos que dão certo no mundo. O setor terá que investir ainda mais em tecnologia embarcada, como equipamentos que monitoram o gasto de combustível, que é um dos custos que pesam no transporte.
Wagner Macedo, empresário da Sonic Transportes, localizada no terminal de cargas do Setor de Indústria e Abastecimento (SIA), lembra dos tempos românticos da atividade, nos anos 1970 (leia abaixo), e destaca que a atual arrumação do mercado tem um lado positivo. “As empresas de transporte são obrigadas a se modernizar e a mudar a relação com o consumidor, cada vez mais exigente”, acrescenta.
Um dos caminhos são as alternativas que consolidam as entregas de cargas. “Nos Estados Unidos e Europa tem os pick-up points. São estações que concentram as entregas. Como nesses países há uma conscientização ambiental maior, funcionam muito bem. O consumidor dispõe-se a sair de casa para buscar a encomenda em um ponto fixo”, explica.
Outra opção tem a vantagem de fortalecer e promover o comércio local. As grandes empresas fazem parceria com os pequenos estabelecimentos de bairro. O consumidor marca a entrega nesses locais e, ao chegar, além de pegar a encomenda, acaba se lembrando de comprar algum produto. O comerciante, por sua vez, recebe uma taxa para ser ponto de distribuição. “É a reinvenção do setor varejista. Quem tentou manter a lucratividade, fez esse movimento. Primeiro, pelas redes sociais, depois, pelos marketing places. Isso vai profissionalizar um pouco o setor de vendas”, acredita Leise Kelli.
“A pandemia da covid-19, por exemplo, fez impulsionar os planos de continuidade de negócios e acelerar o processo de transformação digital, colocando (a logística) em outro patamar”. Marcelo Almeida, doutor em transportes pela UnB.
“ Trabalhamos para que os caminhoneiros autônomos se formalizem por meio do MEI (microempreendedor individual), pois isso lhe garante uma proteção social”. Victor Rodrigues Ferreira, analista de competitividade do Sebrae.
Mudanças com o tempo
Nos anos 1970, Wagner Macedo, da Sonic Transportes, entrou na atividade de transporte RODOVIáRIO de cargas. Foi testemunha das mudanças no ramo. “No começo, o Distrito Federal importava seus produtos praticamente só da Grande São Paulo, com transportadoras locais. A primeira grande transformação foi na diversificação de estados e cidades exportadores para cá, o que obrigou as transportadoras terem mais filiais e frotas maiores — praticamente acabando com as pequenas empresas locais” lembra.
Outro impacto foi o boom, nas décadas seguintes, de terceirização do transporte por grandes redes de abastecimento que, num segundo momento, levou as transportadoras a se especializarem, transformando em empresas de logística, agregando ao transporte rotinas de armazenagem, catalogação de produtos, distribuição, etc. “Nesse período, muitas empresas de pequeno porte fecharam e a atividade passou a ser centralizada por grandes grupos de logística altamente tecnológicos e com grande quantidade de veículos, equipamentos e uma rede de atendimento em todo o Brasil”, destaca.
Agora, constata o empresário, vê-se o surgimento de startups que utilizam o trabalho de pessoas físicas para fazer a distribuição. Elas não precisam manter filiais com grande estrutura, apenas um galpão com pessoal reduzido.
Concorrência
O trabalho é feito por pessoas que utilizam veículos de passeio, sem nenhum vínculo trabalhista, ou de terceirização, o “colaborador” assume todo o custo pessoal e do veículo. Apesar de afetar basicamente a distribuição local, isso dificulta a concorrência, pois o custo da distribuição é uma fatia muito grande do frete e afeta diretamente no preço total. “O impacto a médio prazo deve ser proporcional ao aumento do e-commerce, que deve ter um impulso imenso com a chegada do 5G (a quinta geração da tecnologia móvel). Mas, o Brasil é continental e depende muito do transporte rodoviário, que não devem ser substituídos por autônomos”.
O empresário, estudioso no ramo da logística, adverte que é difícil avaliar o futuro no setor no Brasil. “Vai depender muito da POLíTICA econômica e da regulamentação feita pelo Congresso Nacional, que podem proteger/favorecer o lado das empresas de transporte, ou o das startups. Mas, a mudança de paradigma está aí. Assim como surgiram essas pessoas físicas na distribuição, existem empresas tratando diretamente com caminhoneiros, inteligências artificias administrando as grandes cargas, até a possibilidade do uso de drones. A relação deve ser algo parecido com o Airbnb com hotéis, ou Uber com táxis, o novo e o antigo, juntos.