Inflação galopante, pedidos de empréstimo ao Fundo Monetário Internacional e desvalorização da moeda. As notícias econômicas vindas da Argentina são cada vez mais desanimadoras, e será que elas podem piorar a já difícil crise brasileira?
A BBC News Brasil conversou com analistas para entender quais os principais sinais preocupantes do país vizinho – e como elas podem influenciar empresas e turistas brasileiros.
O que está acontecendo com a Argentina? Para os economistas ouvidos pela reportagem, muitos dos problemas remetem à era Kirchner (2003-2015), quando a Argentina viu diversas multinacionais fecharem suas operações no país pela dificuldade em enviar remessas ao exterior e quando o governo passou a ser acusado de maquiar índices – já preocupantes – como o de inflação. “Mauricio Macri foi eleito (em 2015) com uma agenda de medição correta dos indicadores, saneamento da economia e, assim, mais acesso aos mercados internacionais – a ideia era usar o capital externo para descomprimir a economia argentina”, explica Livio Ribeiro, pesquisador-sênior de Economia Aplicada do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da FGV. Mas, desde então, há poucos sinais positivos a tirar da economia do país vizinho: as contas públicas continuam em situação delicada e o governo precisou recorrer novamente a um pacote de empréstimo do FMI.
Uma questão-chave, diz Ribeiro, é que a Argentina continua tendo um altíssimo endividamento em dólar. “A dívida pública argentina não é tão alta, mas 70% dela está em dólar”, explica ele. “Assim, quando falta dólar (na economia), a dívida explode.” E o dólar tem faltado não apenas na Argentina, mas em todos os mercados emergentes. Em um momento de incertezas globais, aversão a riscos e guerra comercial, muitos investidores externos preferem se abrigar comprando títulos da dívida americana (que são considerados seguros e se valorizaram com a mudança recente na POLíTICA de juros dos EUA) em vez de se arriscar aplicando dinheiro em países em desenvolvimento.
Esse é um dos motivos que deixam o dólar mais escasso e, portanto, mais caro – o que ajuda a explicar a forte desvalorização de moedas como o real e o peso. A moeda argentina, por sinal, é a que mais se desvalorizou no mundo perante o dólar: perdeu mais de 50% de seu valor neste ano. “A questão principal é uma alta dívida em dólar e uma incapacidade de captar essa moeda. Começando a faltar dólar (moeda que as pessoas buscam em momentos de crise), o valor do peso explode”, diz Ribeiro.
A previsão da inflação na Argentina é de mais de 30% neste ano, e ao aumento dos preços se soma uma estagnação da economia: segundo Ribeiro, estima-se que o Produto Interno Bruto argentino recue 2,5% neste ano. “Hoje, temos na Argentina um cenário de estagflação – um dos cenários econômicos mais patológicos”, diz o pesquisador do Ibre, referindo-se à situação de estagnação econômica e alta inflação concomitantes. “É um processo brutal de encolhimento da economia.
A inflação tende a diminuir por conta da estagnação da economia, mas é um processo lento.” Entre as medidas mais impactantes para enfrentar a crise estão a elevação da taxa de juros para 60%, em 30 de agosto, em uma tentativa de estabilizar o peso e manter alguma atratividade para os investidores externos, e os pedidos emergenciais de empréstimo ao FMI, para conseguir trazer dólares à economia.
A esse cenário se somam turbulências políticas semelhantes às do Brasil atual: a pouco mais de um ano das eleições presidenciais de 2019, a ex-presidente (e possível candidata) Cristina Kirchner responderá por ao menos seis acusações na Justiça, envolvendo indícios de corrupção e lavagem de dinheiro. Do lado de Macri, porém, a situação também não é tranquila. “Enquanto Cristina é alvo de sérias denúncias de corrupção que podem tirá-la da disputa, a base do Cambiemos (grupo partidário de Macri) é relativamente frágil.
Pode ser um cenário eleitoral (polarizado e fragmentado) parecido ao brasileiro, mas em um contexto econômico muito pior”, opina Ribeiro. A crise argentina reduz a demanda dos consumidores e, dessa forma, afeta diretamente exportadores brasileiros, explica Otto Nogami, professor de economia do Insper. “O país é um grande parceiro comercial para as exportações brasileiras, e áreas como automóveis, autopeças e (eletrodomésticos de) linha branca estão entre as mais afetadas”, diz ele.
Em comunicado de julho, a Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB) afirma que a má situação no país vizinho vai estagnar, pelo quinto ano consecutivo, as exportações brasileiras de manufaturados em patamar inferior ao de 2007. “E o cenário para 2019 não é animador, pois a Argentina, principal destino dessas exportações, terá baixo crescimento econômico e/ou recessão, elevada desvalorização cambial, déficit comercial e desemprego, (…) afetando diretamente as exportações brasileiras de manufaturados”, diz o comunicado da AEB.
Outro grande impactado é o setor calçadista, que viu suas exportações caírem pelo quinto mês consecutivo até agosto, diz a associação Abicalçados. Segundo a entidade, a forte desvalorização do peso argentino acaba encarecendo o calçado brasileiro vendido em dólar, anulando qualquer efeito positivo que a desvalorização do real teria para deixar nossos produtos mais competitivos no país vizinho. E, além de dificultar as vendas, a inflação e a forte desvalorização cambial argentinas acabam desorganizando diversas cadeias produtivas, diz Ribeiro, do Ibre-FGV. “A cadeia automotiva, por exemplo, tem parques fabris compartilhados entre os dois países.
É um setor com muito encadeamento, então, isso pode afetar setores como o químico, o de borracha, entre outros.” Os turistas se veem mais tentados a visitar a Argentina, uma vez que a desvalorização do câmbio deixa o país, em tese, mais barato. “O problema é que a inflação come grande parte do poder de compra (ganho na conversão cambial).
Então, é muito difícil calcular o efeito final”, diz Ribeiro. Além disso, o turista brasileiro é penalizado pela alta desvalorização do real perante o dólar, que também diminui nosso poder de compra no exterior. Nogami, do Insper, sugere que turistas troquem reais diretamente por pesos (evitando dólares no meio e, pelo mesmo motivo, evitando compras no cartão de crédito, para fugir das faturas em moeda americana), e, assim, tentar fazer o dinheiro valer mais.
E quanto aos turistas argentinos, será que a crise por lá vai afastá-los do Brasil? Nogami acha que pode não ser o caso. “Como o argentino tradicionalmente não confia em seu sistema financeiro, muitos convertem seus salários em dólar ou outras moedas estrangeiras. Perante essas moedas, a nossa está desvalorizada, então (para quem tem dólares ou euros), o nosso país pode ficar atraente”, opina. Muitos elementos atuais ecoam a época da grave crise argentina de 2001, no governo de Fernando de la Rúa: cenário internacional turbulento, alta do dólar, inflação crescente e pedidos de empréstimo ao FMI.
Naquela época, na impossibilidade de honrar com seus credores, a Argentina anunciou um calote de sua dívida pública e, para impedir o colapso do sistema financeiro, foi imposto o chamado “corralito” – uma espécie de confisco do dinheiro depositado nos bancos. E alguns dos efeitos da crise também perduram até hoje: desde a dificuldade argentina em acessar os mercados internacionais até uma grande desconfiança da população em relação ao sistema bancário.
Os fantasmas da crise de 17 anos atrás, por sinal, rondam as atuais negociações de Buenos Aires com o FMI, informou reportagem do jornal Financial Times. “A questão-chave são as condições atreladas a essa negociação”, disse o jornal em 31 de agosto. “Os investidores estão em busca de um ajuste fiscal mais forte (mais contenção de gastos por parte do governo).
Mas se Macri exagerar nas medidas de austeridade, pode impedir o crescimento e aumentar a pressão política sobre o governo.” Do ponto de vista brasileiro, uma eventual piora no cenário argentino pode afetar ainda mais as exportações daqui, mas analistas dizem que hoje o Brasil, embora em situação delicada, está mais protegido de um contágio do que estava em 2001.
E o motivo principal disso é que temos uma reserva internacional de US$ 380 bilhões, que funciona como uma espécie de garantia para investidores estrangeiros. “Nossa economia não está robusta, e temos um alto grau de incerteza política e jurídica. Mas nossa garantia está diretamente relacionada a essa reserva cambial, que é a grande diferença em relação a 2001”, diz Nogami, do Insper.